ARTIGO I - LIVRE: COMO TODOS IMAGINAM SER

Loreto Salinas
Loreto Salinas
Ela nasceu livre. Livre como todos imaginam ser. – Quem quer outra menina? – Esbravejou um jovem homem de olhos negros. – Quem sabe um dia ela volte para casa! – Profetizou outro velho de cabelos brancos. A menina, antes mesmo de abrir os olhos pela primeira vez, aprendeu que naquele mundo tudo era planejado - exceto ela. E assim, ela não chorou. Ela era, como todos costumam dizer, uma espécie de “imprevisto”. A segunda coisa que ela descobriu foi que todos eram iguais, iguais na falta de esperança e sonhos. Já muito determinada, decidiu que dali para frente as coisas seriam diferentes - ela não seria a exceção entre aqueles que eram a regra! Ela logo concluiu que ser diferente não era o melhor caminho para ser amada. Desde pequena ela ouviu que aquele não era o lar para uma menina como ela. Se ela fosse forte o suficiente, talvez, um dia, voltasse para casa. Para isso, era preciso, desde cedo, seguir as regras. Uma vez, quando ela ainda era bem pequena, sem querer, sonhou com um lugar onde havia espaço para todos os tipos de imprevistos. Ela sabia que um sonho para se tornar realidade precisava ser compartilhado. Com medo e vergonha de ser diferente, ela nunca contou o sonho para ninguém. Para evitar que se repetisse, ela enterrou, sob a terra árida, o seu sonho. Ela nunca mais sonhou! Todos os dias passaram a ser iguais. Os dias eram longos e quentes, repletos de estampidos e estrondos. Já as noites eram curtas e frias, com clarões no céu, que podiam ser vistos por entre as frestas da parede do seu quarto. Era preciso estar sempre atenta. Dormir, só era possível, de olhos bem abertos. E assim, em estado de constante alerta, ela cresceu. Certo dia, indo para o trabalho, encontrou um pequeno folheto, com algumas imagens de lugares que ela nunca imaginou que existissem. Entre centenas de letrinhas, foram as imagens coloridas que despertaram a sua atenção - afinal, ela não sabia ler! E foi com os olhos bem arregalados, que ela descobriu, em um velho pedaço de papel, a esperança. A esperança de viver e pertencer a outro lugar. Ela seguiu a vida com seu sonho enterrado e escondendo a esperança. Era preciso, a todo custo, evitar imprevistos, afinal, o seu destino estava traçado - como havia profetizado o velho de cabelos brancos. Durante uma tarde de verão, sem que alguém tivesse previsto, uma grande tempestade se formou no horizonte. Os pingos de chuva logo caíram sobre a terra árida, molhando o que ela havia negado a vida inteira. – Onde os pingos de chuva moram? Certamente é lá onde se formam tempestades. – Pensou ela, olhando para o horizonte, onde o mar encontrava o céu. – Lá deve ser o meu lar, o lar de toda menina! – Concluiu. A chuva, que caiu do céu sem a permissão dos homens, encontrou o sonho adormecido, que logo fincou fortes raízes e brotou, sem que fosse possível podá-lo. A menina, então, contra todas as probabilidades, virou mulher. Não havia mais como deixar de regar o seu sonho e esconder a esperança. Trabalhar arduamente, entre teares e máquinas, era a sua única memória de infância. À noite, em segredo, enquanto todos dormiam, ela passou a planejar o dia que mudaria a sua vida. Tudo tinha um preço e ela estava disposta a pagar. De olhos fechados ela sentia que um dia voltaria para casa. A decisão estava tomada! Os míseros centavos, recebidos pelas longas horas de trabalho, passaram a ser guardados criteriosamente. Deixou de comer para alimentar o seu único sonho. E assim foi a sua vida: um rascunho, de traços simples e econômicos. Chegou a ser considerada a funcionária exemplar, que nunca foi promovida - era preciso saber ler! Ela passou a vida de cabeça baixa diante de uma máquina de costura em uma importante fábrica de lingerie de fina renda - lingerie que também nunca usou! No trabalho, nos raros intervalos de descanso, ficava trancada no banheiro, desenhando o roteiro da viagem que a levaria de volta para casa. Não havia outro espaço para arquitetar o seu plano - o banheiro era o único lugar em que poderia desfrutar de um pouco de privacidade! Era preciso economizar pelos próximos 48 anos para que o seu plano desse certo. Cada detalhe deveria ser previsto minuciosamente: do valor da passagem e tamanho da mala, até o lugar que ocuparia no bote. Usaria seu vestido verde, com suas sapatilhas vermelhas e, finalmente, se daria ao luxo de usar uma calcinha de fina renda. O seu sonho estava florindo! Pelos seus planos, o dia da sua partida, desenhados em preto e branco, seria um dia fresco, de águas tranquilas, ideal para navegar - e o melhor é que não seria necessário gastar com colete salva-vidas! Como planejado, o esperançoso dia bateu à sua porta. Com o bilhete comprado em mãos, só de ida, e uns trocados no bolso, ela finalmente estava pronta para colher o seu sonho. Com a pequena mala feita, cabelos arrumados, o vestido verde já desbotado e uma linda calcinha de renda, viu que era hora de ir até o cais. O trajeto até o porto era curto, não havia nada que pudesse atrasá-la - nem mesmo os sapatos furados, que ela já nem lembrava a cor! Precisamente, às 4 horas da manhã, ela chegou ao cais. O bote já estava lotado, quase não havia espaço para ela e muito menos para a pequena mala. Ela, com o coração acelerado, olhou para trás, viu nas profundezas da noite os clarões e os estampidos ao longe. Tomada pela esperança e com os olhos arregalados, como se ainda fosse uma menina, pisou no bote - era um grande passo para uma mulher tão pequena e franzina! A pequena mala teve que ser abandonada, contra a sua vontade - ela não podia desistir! Ela sabia que um novo horizonte à esperava, onde ela, finalmente, viveria sem se preocupar com limites e fronteiras. Conforme previsto, o dia estava fresco, perfeito para navegar longas distâncias. No tumulto da partida, entre mulheres, crianças, velhos, empurrões e gritos, ela se escondeu em um canto do bote, abraçada ao seu sonho. Sem colete salva-vidas para todos, o bote partiu às pressas. De olhos bem fechados, ela se concentrou no balanço do mar e pediu para que o seu deus não se esquecesse dela. Logo as coisas se acalmaram e se fez um silêncio profundo. Ela abriu os olhos e por entre todas aquelas pessoas, viu os primeiros raios dourados do sol surgirem no horizonte - era o amanhecer, como ela nunca havia visto. Espremida em um canto do bote, abraçada ao seu sonho, ela chorou - chorou pela primeira vez diante de tanta beleza! Suas lágrimas logo se misturaram com gotas de chuva sobre seu rosto marcado pelo tempo. Ela não era mais uma menina! O barco se afastou da costa e logo todos viram a imensidão do mar azul. Ela sorriu e pensou: – Onde estavam todas essas pessoas que nunca conheci? Somos todos iguais? Não havia mais o porquê temer os imprevistos! Pela primeira vez ela se sentiu feliz. O vento logo soprou mais forte e a chuva se tornou mais densa. Uma tempestade não anunciada para aquele dia se lançou contra o mar. Nunca, em toda a sua vida, ela imaginou que pudesse existir tanta água no céu e no mar. – O mar é feito das lágrimas de felicidade daqueles que realizam os sonhos? – Pensou ela. Naquele momento, nada mais importava. Ela estava voltando para casa! Lutando para se manter abraçada ao seu sonho, entre a fúria das ondas do mar e a força da chuva caída do céu, ela chegou onde imaginou estar: – O horizonte, é aqui! É o lar de toda menina! – Essa foi, talvez, a sua última lembrança. Tudo saiu como ela tinha planejado, exceto os imprevistos, que sempre fazem parte da viagem.

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