O PESO DA ALMA


Joe Sorren
A cada amanhecer uma nova vida – era assim que ela compreendia o existir. E com o entardecer vinha a angustia da sua breve existência. Ela não sabia que o sol se punha, acreditava que ele se apagava, morria – e assim, com ele, todas as outras coisas, inclusive ela. Tinha o dom de viver apenas um dia.
- Um dia é tempo suficiente para se viver? – pensava.
Ela desconhecia a existência do tempo – o tempo para ela estava dentro de si, já que era ela que envelhecia. Fora dela, tudo parecia imutável. Mesmo assim, aprendeu que a esperança era da natureza da eternidade. Suas divagações só eram interrompidas com água sanitária – uma inexplicável aversão por água sanitária. Talvez uma explicação plausível estivesse na única lembrança da sua infância.
Quando criança aprendeu na escola que a carne em contato com o ar entrava em estado de putrefação, e, como consequência, surgiam vermes cegos e moscas esverdeadas. Ela que não era boba, logo entendeu que a vida era apenas uma mudança de estado. Concluiu que os mortos, cegos como vermes, enterrados em seus miseráveis caixões, logo se transformavam em lindas moscas a vagar pelo mundo. A partir daquela experiência aprendeu a respeitar os vermes e principalmente as moscas - aí de quem as matasse:
- Que mosca teimosa! - Dizia a mãe. - Minha filha, tapa esse bolo! Jesus, que mosqueiro é esse nessa casa?
- Não mata essa mosca mamãe, ela pode ser a falecida vovó que veio nos visitar!
A mãe nunca entendeu as insólitas associações da filha e muito menos a sua adoração por moscas. Era doentia a forma como a pobrezinha espalhava restos de alimento pelo quarto como forma de agradar não as moscas, mas os entes falecidos que vinham visitá-la!
Os insetos fascinavam-na e por isso se tornou professora de matemática – logo aprendeu a calcular tudo, até mesmo o peso da alma.
- A alma pesa 0,09 gramas – dizia. É o peso ideal para caber em uma mosca!
Ela não cursou biologia para não perder o encanto pela vida. Se recusou também a aprofundar seus conhecimentos em artes – não queria compreender os mistérios da alma. Era melhor quantificar e contabilizar as coisas:
- No mundo existem 80 mil espécies de moscas, 7 bilhões de pessoas e apenas dois tipos de almas: as boas e as más.
Acreditava que só as almas boas se transformavam em moscas. As pecadoras estavam fadadas a viverem como vermes cegos nas profundezas da terra. Aquelas que tinham só um pecadinho, um bem pequenininho, até poderiam ser uma drosófila – mas era preciso ter muita fé.
Antes que se cumprisse a sua sina, ajudava as pessoas – acreditava que era para isso que as pessoas nasciam! Por outro lado, nunca a ajudaram – nem mesmo a entender a sua aversão por água sanitária.
Talvez a explicação estivesse relacionada a ideia de que o produto fosse capaz de esterilizar, destruir, acabar com tudo: bactérias, fungos, protozoários, vermes, cores, lembranças e até mesmo os seres humanos da face da terra.
- Um mundo asséptico seria doentio! – Pensava.
E assim, ela passava o seu único dia de vida tratando de todas essas ínfimas questões. Até tinha tempo para sonhar com a compra de uma linda mansão para abrigar todas as moscas do mundo – seria um santuário! Infelizmente, com o pôr-do-sol, se dava conta de que assim como os vermes, ela logo mudaria de forma, de estado.
- Pra que uma mansão se o que nos resta é ficar cegos no fundo de um túmulo úmido e frio? (...) Éh, pelo menos as moscas voam! - Concluiu.
Tinha pavor de ser cremada – pior do que isso era ser ungida com água sanitária. Ela realmente desejava viver intensamente - em qualquer forma de vida, mesmo que fosse por um dia. Mas assim como era inevitável que o sol se apagasse, também era impossível impedir que se cumprisse o seu destino. E com o fim do dia ela também se despedia de tudo com lágrimas nos olhos.
E misteriosamente com o novo amanhecer, ela outra vez despertava, em uma mesma nova vida – inconsciente da sua verdadeira existência. E a cada dia, surpresa, não sabe se por causa do sol ou das moscas em sua mansão, cantava para comemorar – sabendo que o fim se aproximava:
- A esperança é da natureza da eternidade – Sonhava.

Comentários

Margot Félix disse…
Interessante forma de falar dos que enxergam a vida de uma única perspectiva.

Um abraço!
Luciana disse…
Já passei por algo parecido.. mas eu estava doente... só que eu não enxergava as coisas de uma forma tão linda e poética assim... é tragico e belo! parabens!
Unknown disse…
nós teremos nosso tempo
na terra
Lisa disse…
Sabes, ler e escrever são coisas que faço para equilibrar o peso dessa tal de alma. Alguns autores adensam essa carga, mas não você. Visitar-te me dá o privilégio de caber numa drosófila!
Anônimo disse…
Muito bom!
Maria Alice Ferreira Cota Santos disse…
Por algum motivo eu vi seu blog e por outro grande motivo quis te dizer o que achei.
A alma estampada em palavras que sendo totalmente belas, possuem todo seu sentido.
Gostaria de te conhecer melhor, se o você não for um personagem do seu blog e sim a alma dele.
Natalia Perez disse…
Olá!

So queria te agradecer por um blog tao legal. dramoscopio.blogspot.com.

Quero agradecer pelo um blog maravilhoso. Li o primeiro post "O PESO DA ALMA" e depois passei a hora inteira no blog com muito interesse :) Tudo esta escrito correto, interesante e facil pra ler. Gostei muito do post "IMPÉRIO DA RITALINA".

Eu trabalho na empresa Jooble, nós agregamos as vagas de emprego do mundo todo. Meu trabalho é negociar com os bloggeres sobre colocação de links para nosso site. Eu adoro o meu trabalho, temos uma equipa legal e uma boa direção mas, infelizmente, não sei como é possivel convencer um blogger de colocar o nosso link. Não quero perder o meu emprego por causa disso E agora, em vez de enviar cartas para blogueiros, ficava lendo o seu blog. Na verdade não tenho certeza, que o link para "Brazil" "jooble-br.com", vai ser util no seu blog, mas se achar que será possivel de clocar-o, vou ser muito grata! O site é mesmo legal, vai ajudar muito em procura de emprego. Desejo um bom dia! Mais uma vez obrigada por um blog tão interesante. Escreve mais.
Raquel Stüpp disse…
quanto tempo que eu não passava por aqui,e que surpresa boa.
amigo, amigo...
eu me divirto e me emociono com teus escritos.
tão bom te ler.
quequeluxa