O ÚLTIMO ANOITECER


John Everett Millais
Quando perceberam já estavam juntos. Ele era grande e ela pequena. Ele colecionava coisas e ela se desfazia delas. Ele adorava lembrar e ela preferia o que estava por vir. A vida até certo ponto parecia ter sentido – um sentido inventado. E do dia para noite, se deram conta de que não havia mais o que dizer. Ele continuou colecionando coisas; em silêncio. Ela passou a se desfazer do passado. Ele era magro e ela tinha profundas olheiras. Ele adoeceu da alma e ela do estômago. Antes do anoitecer, eles eram jovens e bonitos. Ele, outrora, colecionava histórias como herói e ela como promissora amante e mãe. Tiveram apenas uma filha.
- Ela se chamará Ofélia, sim, Ofélia como em Shakespeare! - Dizia a mãe.
Obcecada por limpeza, dava tantos banhos na menina que chegou a afogá-la na banheira. Mas não foi intencional, foi um descuido, talvez uma tragédia, obra do destino. Quando eles próprios se apresentavam, quando ainda saiam de casa, diziam que jamais tiveram filhos – por opção:
- Oras, pra que tê-los para logo querer se livrar deles? – Diziam os dois!
Havia uma estranha ligação entre eles - algo que os olhos revelavam. Após o lamentável incidente, passaram a dormir em quartos separados. Ele desconhecia o quarto dela e ela se quer sabia a cor das paredes do quarto dele. Viviam em um mundo insólito. Obcecada por limpeza, jogou todos os móveis do seu quarto fora, assim não acumulariam poeira. Ele, obcecado em colecionar coisas, transformou o seu quarto em um verdadeiro deposito de pequenas lembranças. O quarto da menina foi transformado em uma linda estufa de flores. O amor pelas flores era a única coisa que compartilhavam - em segredo. Nas primeiras estações em que viveram, assim que se conheceram, um completava o outro. Não se sabe quando, mas mesmo vivendo na mesma casa, ele deixou de falar e ela se esqueceu de ouvi-lo. Sentavam para o café da manhã um de frente para o outro em mesas separadas; ele se alimentava vagarosamente do passado e ela, insatisfeita, procurava na geladeira as delícias do futuro. O presente era simplesmente insosso. Na TV assistiam as mais belas histórias de amor - e eles não as reconheciam nem mesmo na ficção.
- O amor é uma patologia - afirmava ele. A cada dia aprendia mais e mais sobre um mundo repleto de lembranças e silêncio. A cada dia, ela sentia cada vez mais o desejo de aventura-se, e conhecer outro mundo: um mundo de águas límpidas e frescas. Quando ele dormia, sonhava com colecionar coisas até tornar-se parte delas. Ela não sonhava. Pelos corredores da casa passavam um através do outro, como fantasmas de velhos contos de fadas. O calendário desbotou-se e até o relógio na parede parou de tédio e cansaço. Os retratados da casa haviam desaparecido juntamente com todas as lembranças. Foi então que chegou inevitavelmente o anoitecer, mais intenso e escuro - conhecido nas antigas histórias como o “último anoitecer”. E finalmente, ao anoitecer, sentiram fome, mas ela não encontrou na geladeira as delícias do futuro e ele as apetitosas lembranças do passado. Insatisfeito, ele voltou para o quarto com alguns botões coloridos de roupa infantil e os depositou sobre uma montanha de outras pequenos objetos meticulosamente sobrepostos. Percebeu que o enorme amontoado de coisas desabaria com o menor movimento na casa. Era preciso ter cuidado com obras tão delicadas! Lá fora, depois de anos, ele ouviu um barulho; era o portão. Esgueirando-se entre o amontoado de coisas chegou até a janela, e lá de cima viu o portão entreaberto; sob a luz da lua que já brilhava no céu avistou alguém que o olhava também. Abismado, reconheceu, apesar da distância, aqueles olhos. Eram os olhos que outrora foram as estrelas da sua noite! Ele, olhando-a através da janela, e ela, ofegante no portão, reconheceram-se no mesmo espaço e tempo. Nas mãos ela carregava uma coroa de flores. Do portão, tentou acenar - e não conseguiu. Ele pegou a primeira coisa que encontrou - um espelho - tentou posicioná-lo sob a luz da lua para lhe fazer um sinal; mas também não conseguiu. Sozinha, olhando para a escuridão, ela finalmente tomou coragem e aventurou-se em um novo mundo. Da janela, em silêncio, ele a acompanhou com os olhos cheios d’água. Sentiu-a se afastar cada vez mais, correndo, em direção ao salgueiro que refletia nas margens cristalina sua copa acinzentada. E para lá ele a viu partir carregando nas mãos uma coroa de margaridas, urtigas e cravos. Ela, repleta de sentimentos tão estranhos, tentou pendurar a coroa nos galhos inclinados, quando um dos ramos invejosos quebrou, lançando na água chorosa a coroa e a ela própria. Seu vestido se abriu, sustentando-a por algum tempo, enquanto ela cantava antigos trechos de canções de ninar, ocultando a consciência da desgraça, como criatura nascida e feita para aquele momento. Muito tempo, porém, não demorou, para que o vestido se tornasse pesado de tanta água e que seus cantares levassem a infeliz para a morte lamacenta. Ele, comovido com tal visão, tentou sair do quarto, correndo pelo corredor estreito, entre suas coleções; que inevitavelmente desabaram, soterrando-o completamente. Tombado pelo peso, se reconheceu como parte de cada coisa; todas lembranças. No entanto, ao deparar-se com o espelho, não se reconheceu na imagem refletida. A lua revelou-se imponente no céu, sua luz refletiu nas águas cristalinas do rio, iluminou a pequena estufa e fez florescer os lindos botões de flores do último anoitecer.

Para ler ao som de I Loved You Once de Patrick Doyle

Comentários

La Vanu disse…
Pobre Ofélia pós-moderna! Quanta poesia nesta tragédia inevitável!
Very interesting....
Enquanto lia me via em tantos pontos do texto...Chorei.
Sem perceber deixamos que um amor antes tão intenso e verdadeiro, se embote, se perca por nosso egoismo, por não sermos flexiveis, por nos impormos ao outro.Ou simplesmente por nos isolarmos.
E a somatização de mágoas nos faz amargos e distantes.
Isso acaba com o amor.
Bjos achocolatados
Guará Matos disse…
Caramba, que dor que dá.
É assim, infelizmente, qua acaba muitas vidas. Perdidas, sem rumos, sem luz, sem nada. Quando percebemos estamos engolidos pelos amontoados inuteis, acumulados por nossas parcas atitudes. E quando tentamos reagir não há mais tempo.

Feroz, entretanto exposto verdadeiramente.
Abraços.
Olá Emerson
Obrigado pela visita ao meu blog e pelo comentário. Quando puder volte, vou gostar muito.
Te sigo
Bjux
Bruno disse…
Lindo, inusitado ... triste e ao mesmo tempo tão intenso, nos faz pensar no outro, em quem esta ao nosso lado ... precisamos cultivar as relações, ceder, amar, e principalmente respeitar para estarmos prontos a superar desafios e obstaculos que a vida nos impôe, com tudo isso estaremos sempre fortes e unidos para o que der e vier ... LINDO LINDO LINDO ... Beijo do seu sempre fã ...
Guará Matos disse…
O regulamento para o sorteio esta publicado.
Abraços.
Anônimo disse…
Obrigada pela visita.


Volte Sempre !!!



Bjo.
Um texto bem teatral, como era de se esperar, pelo seu perfil, não é mesmo?
Muito interessante!
Abraço!
Regina Laura disse…
Oi Emerson, vim retribuir sua visita e estou encantanda com o que li.
Uau, que texto!!
Sufocante nas lembranças, nos desejos, no desencontro...
Uma tragédia anunciada, como tantas que vemos e, por vezes, vivemos.
Que caminhos obscuros a mente pode escolher para se libertar...
Voltarei outras vezes com certeza.
Beijos
Cara, beleza?
Vim retribuir a visita e me deparei com seus textos tão maravilhosos, e aqui fiquei por horas...
Mágico, Fantástico...adorei....vou ter que voltar sempre....Parabéns!!!
Alexandre Pedro
Guará Matos disse…
Olá, de novo...
Chegou o bom momento, ou o grande dia!
O sorteio esta lançado e você por me seguir e ler-me, convido-lhe a participar. Leia o regulamento e respondas as perguntas. São 20 livros que serão sorteados.
Vamos lá!
Sua participação é o meu grande presente.
JORNAL AFOGANDO O GANSO
http://afogandooganso.blogspot.com

Guará Matos,
@GuararemaMatos
Anônimo disse…
Eu que não consigo de parar de ler os seus.
Obrigada pela visita e por ter me descoberto...só assim pude fazer o mesmo;)

Gde beijo.
Maria Borges disse…
Oi amado, fiquei muito feliz de ter você em meu blog, seja bem-vindo!!

Gostei muito daqui também, já estou seguindo-te :)

Beijos com carinho e uma ótima semana para você!
Pérola Anjos disse…
Nossa, que intensidade, que dramaticidade!

Obrigada pelas linhas encantadoras que você soltou pelos meus ares!

Beijos!
Ótimo texto!

Peço a Deus, nas alturas, que me livre de tal destino, viver morta.

Um conto trágico, dramático, intenso, repleto de verdades.

Um abraço.
Zeka Viola disse…
belo e trágico como tantas vidas que conhecemos ou as nossa próprias quando deixamos de olhar o outro, tão próximo e tão distante . Amei!