FIM DOS TEMPOS - PRÊMIO SCRITTA DIA DO ESCRITOR

Robert and Shana Parkeharrison
Prêmio - IV Concurso Dia do Escritor 2010: "Fim dos tempos", de Emerson Cardoso Nascimento

Ela nasceu analfabeta, porém, logo se interessou pelas letras. Entre tantas, ela era a última da sua espécie; estava fora de linha. Todas as outras foram programadas, só ela teve o prazer de aprender e ensinar. Comia pouco, mas lia muito. Mesmo com as pouquíssimas refeições balanceadas à base de alimentos industrializados, ficava cada vez mais gorda. No entanto, não era um problema de fabricação, já que tinha sido gerada para resistir a quase tudo. Contudo, seu crescimento descontrolado era causado por um novo vírus. Em compensação sua alma não engordava nunca. Ela era resistente, mas as bruscas mudanças climáticas a abatiam. Em tempos tão modernos, seu maior sonho era ser “professora”. Mas não uma “professora” qualquer, como aquelas “virtuais”, mas uma educadora à moda antiga com quadro, giz e vários anjinhos enfileirados metodicamente um atrás do outro. Foi então que encontrou uma escolinha perdida em um longínquo lugar. E na velocidade da luz tratou logo de pisar na esperada sala de aula:

- Um pequeno passo para uma mulher, um salto gigante para a humanidade! - Pensou. No primeiro dia tentou se adaptar rapidamente as novas condições espaciais da salinha.
- Que linda flor! Ainda existem aqui? Apesar de estar um pouco murchinha ainda é muito linda. Quem fez a gentileza de trazê-la para a professora? – Perguntou com os olhos cheios d’água.
- "Ela já instava aí quando chegamu"! – Responderam os anjinhos. Desde então, flores murchas passaram a povoar os seus sonhos. Era só adormecer que os anjinhos surgiam em carteiras aladas trazendo em mãos muitas flores murchas. Acordava ofegante e não dormia mais. Deduziu que precisava estudar atentamente o manual de instrução de cada anjinho antes que de procurar tratamento.
A escola ficava no alto de um morro, onde só era possível chegar voando. No entanto, ela não tinha condições, pois tinha medo de pilotar naquelas alturas. Com chuva ou sol, lá estavam todos os anjinhos na escola. Não se sabe se compareciam porque gostavam de aprender ou se eram atraídas pela comida. Eram muitos, de todos os tamanhos e formas, já as professoras estavam em extinção desde a queda do último meteoro. Os dias eram cada vez mais quentes e passavam depressa. No fundo ela adorava estar de volta para reaprender a viver. Acordava cedo e logo se dirigia ao trabalho com o seu Mark. Chegava vestida em uma roupa especial aplaudida pelos anjinhos. Cada professora tinha o seu Mark I - um modelo ultrapassado dos primeiros tanques de guerra -, porém, eram todas solteiras. Ela era a idealizadora do projeto "U.M", ou: “Última Missão” - todas as anteriores haviam falhado. Ao seu lado havia apenas outra voluntária. Na verdade só existiam duas professoras, ela e a aprendiz. Estavam incumbidas de preservar as últimas formas de "vida inteligente" naquele lugar. Bem, elas estavam largadas a própria sorte! Ao fim de cada longo dia de trabalho sempre se perguntavam:
- É o piolho que suga a inteligência do cérebro? Só pode ser? Ainda não foi descoberta a cura para essa praga?
- Eles não sugam nada, eles só ficam no alto da cabeça para assistir a aula! É um insetinho esperto, foi por isso que sobreviveram ao lado das baratas! – Completou a outra experiente aprendiz de professora. Elas eram apelidadas de "as estrangeiras" e tinham pavor de insetos, os únicos sobreviventes junto aos anjinhos daquele lugar.
A vida da pobrezinha era planejada como as suas aulas - teoria e prática pareciam não se entender! Ela até tinha outra vida fora da escolinha. Uma vida secreta. Chegou a arrumar um namorado que também era professor; um remanescente das primeiras missões. O coitado tinha problema em uma das suas próteses mecânica e, além de tudo, dedicava-se ao ensino religioso. Seu sonho era resgatar as lembranças perdidas, porém, ele mesmo havia se apagado com elas sem se dar conta. Ele quis ensiná-la a rezar e ela aprendeu a dar, a "dar o fora". Desesperada com o seu crescimento desmedido passou a alimentar-se de luz. Desde o último terremoto as pessoas misteriosamente haviam parado de nascer. Os sobreviventes do morro eram as últimas esperanças daquele lugar. Voltando para a base com a amiga, pela primeira vez, sentiu ama coisa que deduziu ser a "felicidade":
- Fiz milagre com os meus anjinhos, finalmente! Depois desses longos anos ensinando todas as letras, eles já conhecem três! O “I”, o “M” e o “F”.
- Querida, seus anjinhos já podem criar um texto!
- Você acha que eles são capazes? – E tentou soletrar o texto em voz alta:
– F, M, I. F, I, M. FIM? – Ficou abismada com as combinações.
A amiga inconformada com a visão limitada da professorinha aproveitou para demonstrar as suas conquistar:
- Querida, se eles conhecem três letrinhas, os meus nesses cinco anos já conhecem seis:
- P, E, M, T, O e o S - Soletrou.
Quanto tempo levaria para ensinar as vinte e tantas letrinhas do alfabeto, fora as junções e as combinações complexas? O problema não era dos anjinhos, era do alfabeto. Ela mesma trocava algumas letras, pois convivia com tantos erros que chegava a pensar que seria “é-t-i-c-o” praticar o “i-n-c-o-r-r-e-to”. Realmente a telepatia tinha lá as suas facilidades.
Certo dia, durante o banho, foi iluminada pelo manto sagrado do código genético.
- Me diz por que os benditos anjinhos vão aprender a escrever se os pais são analfabetos? E pra que aprender a ler em voz alta se as mães são surdas? – Pensava em voz alta sobre as mazelas provocada pela fome e pela guerra.
Nua, no banheiro, passou a desenvolver coisas mais ousadas, afinal ainda estava viva:
- Calma, calma! Quando entrar vai ser de uma vez só! – Era assim que imaginava que todas aquelas letrinhas entrariam nas cabecinhas daqueles anjinhos. Era só dar tempo ao tempo que logo despertariam.
Após o trabalho passava horas no banho. Sentia-se imunda. Seu corpo era asseado, porém, sua alma parecia estar cada vez mais suja. Era como se um vírus consumisse a sua alma, e não adiantava se quer rezar. Nessas horas ela se lembrava do antigo professor - pelo menos alguma coisa dele havia entrado bem no meio das suas ideias:
- Não é a matéria que morre, é a alma doente que mata o corpo! – Lembrava da maldita boca a catequizando. No fundo, bem lá no fundo, ela ainda amava todas as coisas. No entanto, o "amor de gente" ela não sentiu; só conheceu a paixão nos romances que leu. Finalmente, no décimo terceiro ano letivo, ela pode refletir sobre o trabalho de quase uma vida inteira:
- Vamos ver quantas letrinhas esses anjinhos já sabem: doze? Será? Magnífico! – Saltitou de alegria.
E foi durante as esperadas férias, a única, em um domingo de sol e céu azul - cada vez mais quente - que ela finalmente descansou. Descansou eternamente. Na verdade a pobrezinha morreu. Morreu alfabetizada. No céu encontrou todos os anjinhos a esperando com um magnífico cartaz com todas as doze letrinhas organizadas perfeitamente e um lindo lírio branco. No cartaz ela viu escrito, com capricho: “FIM DOS TEMPOS”, e pode finalmente sentir o amor na linda flor; o seu maior presente.


Publicado no site: http://www.scrittaonline.com.br/artigos/3-lugar-concurso-dia-do-escritor-2010-fim-dos-tempos-de-emerson-cardoso-nascimento

Comentários

Franck disse…
Vc, como sempre, arrasando nos textos! Tão bom vim aqui!
Abç!
Hello!How are You?!
Very interesting!
Perfeito.....Parabéns.....Estou sem palavras, Amei!
abraço
Alexandre Pedro