DA CHUVA, O SILÊNCIO


De repente foi como tudo tivesse se transformado em ar. Acordei seis horas depois na mesma posição. Em pé olhando para as estrelas, agora já sol, pela janela estreita daquele lugar. Não me lembro de nada. Só do silêncio. Do silêncio insípido.
Recebi ontem uma carta. Ler? Só me dei conta que precisava hoje. É uma em branco quase carta, me chamando para lá. Ao guardá-la me deparei com outras onze cartas com a mesma letra, tamanho, cor, remetente e cheiro. Agora são doze. Nunca estou onde meus pés estão. Acho que chegou a hora de ir. De partir.
Minhas malas por incrível que pareça já estavam prontas. Só foi preciso a poeira tirar de cima das três da primeira, amontoadas lá no canto.
De banho tomado, servi duas xícaras com amargo e quente café. Tomei. A outra permaneceu xícara cheia.
Subi as escadas. Peguei meu espelho e minhas malas. Decisão tomada. Escadas eu desci e encontrei a outra xícara também tomada. (...) Pensei em estar pequena demais para aquele lugar. Cercada pelas malas, nem me lembrava há quanto tempo ali estava. Lembro do frio e de que nunca as malas desfiz.
Fechei a porta atrás de mim. Tranquei-a. (...) A cidade ainda dormia. Passei pelo jardim, mas não encontrei flores. Sementes talvez.
Sempre à esquerda, dobrei a primeira esquina e joguei ali as chaves. Nenhuma chave abre todas as portas. Já as janelas não precisam de chaves.
O sino no alto da torre batia as horas. Horas inexatas. Enquanto apressava os passos, ouvia a cidade acordar sem ninguém. Senti estar atrasada não estando, e isso não me era estranho.
Tantas coisas aconteceram, passaram e nem se quer percebi. Hoje sei que me atrasei no tempo que passou a não existir.
Cheguei a tempo. A estação vazia não parecia tão sombria quanto das outras onze vezes que ali tinha estado pela primeira vez. O guarda tomou da minha mão a passagem. Conferiu a hora, o destino, o meu nome e a causa da partida. Num gesto delicado, acho que de compaixão, apontou-me a cabine.
O trem partiu e no susto não pude ver seu rosto, mas sei que havia um rosto, pelo menos naquele. Um rosto familiar.
Pela janela estreita olhei a estação. Estava vazia, silenciosa. E o rosto se fora, como no ar. Senti a velocidade e um som ecoou. Sorri. Estava mudando.
Os outros compartimentos estavam vazios. O meu coração gelou. Pensei em desistir, fugir, correr dali... Levantei e corri pelos corredores. Era tarde. As luzes, as sombras, as lembranças, as cores, as árvores, já passavam velozmente pelas janelas... E pelos meus olhos fechados.
Voltei ao corredor e ele pareceu maior. Um labirinto como no coração. Num pude encontrar mais meu compartimento. Acomodei-me num outro sem número. Sentei. Senti minhas mãos vazias. Havia deixado as chaves e as malas na estação.
Recostei a cabeça no vidro e olhei meu relógio. Sem ponteiros, sem números, sem horas. Havia parado. Apenas escuridão. Não via as horas e sim o tempo.
Acordei oito horas depois na mesma posição olhando o relógio. Finalmente havia compreendido o tempo. O tempo relativo.
Foi a viagem mais rápida que já tinha feito. Talvez por ser a primeira e a única. Cheguei.
O movimento cessou. Os compartimentos foram abertos. Nos corredores, surpreendente, pessoas tantas, que não me lembro do rosto de nenhuma. Esperei todas descerem e só então pisei em terra firme. Estava eu agora ali onde antes era lá, sem ao menos ter enjoado.
Um pálido gentil homem ofereceu sua mão para que eu não caísse. Não estava acostumada, logo com aquelas escadas ao contrário. Ele conferiu minha passagem e informou que aquele era o lugar.
Sem passagem de volta e sem malas, esforcei-me para identificar o lugar na esperança de ainda lembrar o caminho. Não havia lugar para bagagens...
Por uma multidão de rostos, sombras, caminhos... Meus instintos me levaram. Quantos e nenhum...
Logo pude ver no alto da torre, as horas exatas. Hora de chegar.
Sempre à direita, dobrei a primeira esquina. Passei pelo jardim e havia flores, mas não sementes. E ali diante de mim estava ela. A porta. Atrás de mim, tudo aquilo... E mesmo assim, ainda ali, aquela porta. E eu sem as chaves.
Com quatro toques, sim, quatro toques dos meus dedos contra a porta me fizeram ver que eu tinha as minhas novas chaves.
Por que estava eu batendo para entrar se já estava dentro? Se eu continuasse batendo certamente alguém lá de fora entraria.
Só então me lembrei que precisava entregar aquela carta. A carta que tinha esquecido na minha mão entre os meus dedos.
Coloquei-a sobre a mesa e virei para me olhar no espelho. Tinha acabado de chegar. De frente para o espelho vi minhas costas.
Um silêncio. Ouvi passos pelas escadas. Quando procurei ver de onde vinha não encontrei mais a carta.
Desde que tinha chegado ali, estava dois dias mais velha. (...) Ainda posso ouvir passos lá em cima. O chuveiro agora está sendo ligado. Água quente, muito quente... Quase posso sentir... Pingos. Chuva de pingos.
E a carta na mesa? Não mais, simplesmente, estava lá! No lugar, duas xícaras. Xícaras brancas. Café preto. A boca adocicada. E o café... Amargo.
Uma das xícaras já estava tomada. Restou-me a outra só agora tomar. Sozinha. As duas ficaram vazias. Só senti o perfume do banho pela casa.Ainda posso ouvir... As malas sendo feitas, mas não posso ver. Sinto, algo vai partir. Decisão tomada. Está tomada.
Minhas costas teimam em ocultar meu rosto no espelho. Viro-me e não vejo nada, mas ouço. Ouço a chave. Ouço a porta sendo fechada por fora. E agora silêncio. Silêncio...
As chaves! As chaves! As chaves!(...) As chaves foram jogadas fora. As malas partem. (...) Eu chorei.
Recuei. Não sei se triste me senti ali por estar. Ali entrar. Só sei que senti das cores a necessidade. Das cores do jardim pelo qual alma minha passou.
Vi o interior. O interior inteiro de onde estava. Vi uma escada. Não pude contar o numero de degraus.
Estranho! Quanto mais subia, mais próxima do chão estava.
Subi correndo os últimos lances de escada e deparei-me com o lugar. (...) No centro um relógio negro. Sem ponteiros, sem horas, sem tempo...
O lugar vazio. As malas não estavam mais lá. Só cartas. As cartas que eu tinha escrito. Enviado. Todas elas ali, ainda repletas de cheiro... Repletas de lembranças, de saudades... Repletas... Todas elas. Agora doze.
E assim, de repente, foi como se tudo tivesse se transformado em ar. Acordei seis horas depois na mesma posição. Não me lembro de nada. Só do silêncio. Do silêncio insípido. (...) E das xícaras vazias, das malas que falta estavam fazendo...
E eu. Sem as chaves...
(...)
Batem na porta. Quatro toques. Lá fora, escuridão.

Comentários

Silvinha disse…
Encontrei seu blog através do blogblogs.Gostaria de te propor parceria de troca de links.
Se aceitar deixe recado no meu blog.
Ps: Desculpe postar nos comentários.
http://erazen.blogspot.com
mARINA mONTEIRO disse…
por onde andas????
escreva mais.

saudades...
mARINA mONTEIRO disse…
me ensina a editar meu blog?
tb quero numero de visitantes.

bju
LUCAS disse…
Olá Emerson, muito interessante seu blog! fiz um para mim também e espero que visites e comentes quando puderes que eu também irei visitar o seu! Achei o seu bastante criativo e inteligente! gostei muito da enquete ali que inclusive participei! Grande abraço! saudades! fique com Deus e cuide-se! Um bjo para seu pai e sua mãe! té +...
Anônimo disse…
Tim Burton? Sua fonte de inspiração? Lembrei da "Noiva Cadáver", parecia ela naquela estação, mórbida, sozinha, triste, sem ninguém, sem esperança. Bem criativo, mas imensamente triste.